Reportagem publicada no jornal O Popular traz alerta do Cremego sobre o uso correto dos jalecos pelos médicos. Confira:
O POPULAR
Regras para uso do jaleco são ignoradas
Apesar de proibição pela anvisa, O POPULAR flagra profissionais de saúde usando a roupa e até equipamentos fora do trabalho
Profissionais de saúde estão desrespeitando normas técnicas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Ministério do Trabalho e Emprego, que restringem o uso do jaleco ao local de trabalho. Com isso, expõem pacientes e a si próprios ao risco de infecções provocadas por micro-organismos, inclusive bactérias resistentes. O POPULAR flagrou médicos e outros profissionais usando não apenas o jaleco branco, mas até equipamentos fora de hospitais e clínicas.
Perto do Hospital de Urgências de Goiânia (Hugo), na manhã de terça-feira, um médico caminhava pela calçada vestido com o jaleco branco e tendo pendurado ao pescoço um estetoscópio. Ele não era o único usando a roupa – cujo uso é recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como uma barreira de proteção contra acidentes e o contato com germes – fora do ambiente hospitalar.
A reportagem também encontrou profissionais de saúde usando jaleco nas proximidades do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Goiás (UFG) e também no Setor Aeroporto, em região de grande concentração de clínicas e hospitais. A dona de um restaurante localizado próximo ao Hospital Geral de Goiânia (HGG) disse que já havia pedido que eles não usassem o jaleco no local. “Mas muitos não ligam para isso”, relatou.
A Norma de Segurança e Saúde no Trabalho número 32 (NR 32), do Ministério do Trabalho e Emprego, estabelece que esses profissionais não devem usar adornos, como alianças, colares e brincos, manusear lentes de contato no ambiente de trabalho nem usar sapatos abertos (veja quadro). Não é o que acontece.
Leis Para disciplinar o assunto e estabelecer punições, como multas, cidades como Belo Horizonte, Recife e Maringá (PR) criaram leis específicas proibindo principalmente o uso de jalecos por profissionais de saúde fora do ambiente de trabalho. Em Goiás, a Associação dos Hospitais tem realizado palestras para chamar a atenção para as normas.
Uma pesquisa realizada pelas médicas Fernanda Dias e Débora Jukemura, com orientação da professora Maria Elisa Zuliani Maluf, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, deu uma dimensão dos riscos que cercam o hábito de usar jalecos fora do local de trabalho: 95,83% dos jalecos analisados por elas estavam contaminados. O estudo mostrou ainda que as vestimentas estavam mais contaminadas em áreas de frequente contato com pacientes, como mangas e bolsos, e o principal micro-organismo identificado foi o Staphylococcus aureus, bactéria associada às principais ocorrências de infecção hospitalar.
Outra pesquisa, também coordenada por Maria Elisa Zuliani Maluf, dessa vez com quatro alunos, apontou alto índice de contaminação também em um dos principais instrumentos utilizados pelos profissionais em consultórios e enfermarias: o estetoscópio. Das 300 amostras analisadas, 87% estavam contaminadas. Entre os agentes patogênicos, foram identificados cocos gram-positivos, leveduras, fungos e bacilos gram-positivos e gram-negativos. Os mais frequentes foram Staphylococcus aureus, Staphylococcus coagulase e Bacillus.
Infectologistas alertam para perigo de contágio
A médica infectologista Ludmila Passos Costa, conselheira do Conselho Regional de Medicina (Cremego), explica que os cuidados com o uso do jaleco servem tanto para proteger o profissional de saúde do possível contato com germes no local de trabalho como também para evitar que eles levem micro-organismos de ambientes públicos – como ônibus, bancos e outros – para o ambiente hospitalar. “É uma via de mão dupla, por isso o uso deve ser restrito ao local de trabalho”, explica.
Ela esclarece que o jaleco branco é diferente dos que são usados em centros cirúrgicos e unidades de terapia intensiva (UTIs), que devem ser esterilizados por autoclave, mas ainda assim requerem cuidados. “O problema é que muita gente usa em todo lugar e o jaleco pode, sim, veicular germes, fundamentalmente bactérias”, afirma. A recomendação do Cremego é de que os jalecos sejam usados somente nos locais de assistência à saúde. “Há profissionais que desfilam com o estetoscópio no pescoço”, observa, acrescentando que o aparelho deve ser higienizado com álcool na proporção de 80% após cada uso. Ela acredita que em Goiânia o desrespeito à norma é pequeno, mas reconhece: “Falta consciência aos profissionais de saúde, que devem seguir todos os passos para evitar transmitir ou adquirir alguma infecção”.
Diretor-geral do Hospital de Doenças Tropicais (HDT), o também médico infectologista Boaventura Braz de Queiroz, diz que as campanhas em relação a medidas de higiene têm sido frequentes. “A adesão não é como seria desejável”. Boaventura se diz preocupado com existência de bactérias com alto grau de resistência a medicamentos. “Os profissionais precisam ter rigor no uso de equipamentos de proteção individual (EPI) e também em sua deposição”, diz.
ENTREVISTA | DÉBORA JUKEMURA
“O uso negligente do jaleco tem mais riscos que benefícios”
Médica que realizou pesquisa sobre o uso de jalecos fala que profissionais devem deixar o equipamento no ambiente de trabalho e pede normas mais rígidas sobre o assunto.
Qual a principal conclusão da pesquisa?
A conclusão é de que a maioria dos jalecos (foram analisados cerca de 100) estava contaminada e que, ao comparar os profissionais que usavam com os que não usavam, muitas vezes o punho dos que usavam jalecos estava tão contaminado quanto os dos outros. Isso significa que o jaleco não funcionava como uma proteção.
E para o paciente? O uso do jaleco representa alguma vantagem?
Para o paciente também não representa vantagem. Historicamente, o jaleco é usado como uniforme, é bom para identificar. Mas não se pode usar indiscriminadamente, fora do ambiente, por exemplo. O uso negligente, inadequado do jaleco tem um potencial maior de risco do que de benefício.
Existem normas que disciplinam o uso da vestimenta apenas no local de trabalho? Há resistência a elas?
No Brasil a questão não está regulamentada. Em algumas cidades do país apenas, como Marília e Sorocaba (ambas em SP), são bem rígidos no uso fora do ambiente hospitalar. Mas falta norma regulamentadora nacional. Durante a pesquisa não encontramos material nacional com embasamento científico na bibliografia. Na França, o uso já é bem regulamentado, é modelo.
Qual seria a forma mais eficiente de fazer com que o jaleco (e outros instrumentos, como o estetoscópio) sejam usados unicamente no ambiente de trabalho?
Na França, por exemplo, usam jalecos de mangas curtas. Então, o punho (do jaleco) não tem tanto contato com o paciente. Um jaleco assim funcionaria para proteção do profissional, deixando a pele do braço exposta. E a pele pode ser lavada sempre. O jaleco também deveria ser deixado no ambiente. O ideal no Brasil seria usar jalecos descartáveis, ou seguir o exemplo da França. Lá o hospital oferece e lava o jaleco na lavanderia, fazendo um controle via cartão. Com isso, controlam a lavagem e a permanência do jaleco no hospital. Mas isto está longe da realidade do sistema público de saúde do Brasil por questões de custo. (Reportagem de Carla Borges, publicada no jornal O Popular em 02/01/11)